Acreditamos que a infância é um território distante, cujas memórias se apagam com o tempo e que as feridas dessa fase se curam e os hábitos se dissolvem quando vestimos a roupa de adulto. Essa ilusão é confortável mas não é fato. A verdade é que o que acontece na infância não fica na infância. Aqueles anos não são um prólogo, mas sim o alicerce invisível sobre o qual construiremos, ou tentaremos construir, toda a nossa vida. E um dos legados mais críticos da parentalidade contemporânea é a crise dos limites.
A criança ignorada aprende, na pele e na alma, que seu amor não tem valor. Ela não “supera” por não ter recursos e entendimento para isso. Ela carrega esse sentimento para sempre, tornando-se um adulto que sabota relacionamentos, desconfia de afeto genuíno e acredita, no fundo, que é indigno de existir. É uma sentença de solidão perpétua.
A criança que cresce sem limites experimenta um mundo totalmente distorcido, onde seus desejos são ordens. Ela acredita, no núcleo de seu ser, que tudo lhe é permitido. As consequências se manifestam de forma brutal, um trágico exemplo disso é o caso da menina de 9 anos, “suspeita” de ter matado a própria mãe a facadas em São Paulo, pelo motivo banal de ter sido reprendida por ela. Este ato extremo é a materialização de uma criança que aprendeu a lidar com frustração, transformando um “não” em agressividade descontrolada e absurda.
No curto prazo, isso se traduz na cena comum da criança/adolescente que não aceita um “não”, que responde com agressividade ou desdém à mais simples negativa, e que encara o mundo como um serviço de entrega imediata de satisfação.
Não se engane: o seu presente é um retrato falado do seu passado. Sua ansiedade, seu pavor de rejeição, seu vício em trabalho para preencher um vazio, sua incapacidade de dizer não ou de ouvir um não. Tudo isso é a criança ferida dentro de você gritando por algo que nunca teve.
Na tentativa bem-intencionada de dar tudo o que não tiveram, os pais buscam ver os filhos sempre felizes e evitam qualquer frustração, seja por omissão ou insegurança, estão abdicando de um de seus papéis mais essenciais: o de impor regras claras e consistentes.
O resultado dessa educação, que privilegia o afeto sem a estrutura necessária, já pode ser visto com clareza nos adolescentes e adultos de hoje.
Esse princípio se revela de forma mais contundente na crise dos limites. Na tentativa amorosa, porém equivocada, de criar filhos sempre felizes, muitos pais ofertam coisas e permissividade no lugar da presença e da autoridade.
A criança que vive sua infância sem regras claras e consequências consistentes não está apenas tendo um comportamento “errado”; ela está internalizando uma lei perigosa: a de que o mundo deve servir aos seus desejos.
E então, o padrão se repete. O adolescente que não ouviu um “não” em casa não consegue aceitá-lo da vida. A frustração, uma desconhecida em seu mundo moldado para o prazer imediato, se transforma em agressividade, ansiedade ou paralisia. E o adulto que surge desse processo é a sombra alongada dessa criança: no trabalho, espera reconhecimento sem mérito; nos relacionamentos, exige entrega sem reciprocidade; perante os obstáculos, se vê frágil e despreparado. A vida, que não poupa ninguém, cobra um preço amargo por uma lição não aprendida na época certa.
Investir na infância, portanto, não é um gesto que fica no passado. É um compromisso com o futuro. É entender que a semente do caráter, da resiliência e do equilíbrio adulto é plantada no solo único e que não se repete, da infância.
Ignorar esse fato é permitir que os padrões de despreparo e insatisfação se repitam, geração após geração. Porque, no fim, a criança que fomos é a pessoa que nos tornamos e o que vivemos na infância não fica para trás, mas nos acompanha para sempre.
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